‘Passado imaginário’, por J. R. Guzzo
PUBLICADO NA EDIÇÃO IMPRESSA DE VEJA
J. R. GUZZO
Uma das últimas modas no PT, no governo e na procissão de devotos que acompanha o ex-presidente Lula é lembrar a figura de outro ex-presidente, Getúlio Vargas, para defender-se do desabamento moral em que todos estão metidos hoje. A intenção desse novo plano mestre, mencionado em documentos do partido e tema dos discursos a serem feitos nas “caravanas” que o ex-presidente planejou para este ano, é vender ao público a seguinte história: Lula e seu “projeto para o Brasil” estão sendo agredidos, em 2013, pelo mesmo tipo de ofensiva que causou a liquidação do governo de Getúlio em 1954. A primeira reação é fazer uma sequência de perguntas: “O quê? Quem? Do que é mesmo que estão falando?”. A segunda reação é constatar que, sim, o estado-maior do PT está dizendo isso mesmo: um personagem de outro mundo, de uma época morta e de um Brasil que não existe mais está de volta entre nós. Ele foi tirado do túmulo numa tentativa de convencer o público de que episódios de corrupção, sejam lá quais forem os fatos que comprovam a sua existência, são apenas uma invenção das forças antipovo para armar “golpes de estado” contra governos democráticos e dedicados à causa popular, como teria sido o de Getúlio ─ e como seriam hoje os de Lula e sua sucessora, Dilma Rousseff.
A última causa popular que empolgou o PT foi a campanha em favor da eleição do deputado Henrique Alves para a presidência da Câmara e do senador Renan Calheiros para a presidência do Senado. Naturalmente, como acontece em quase tudo o que o partido faz hoje em dia, é uma clara opção para enterrar-se mais ainda na vala comum da baixa política brasileira; Alves e Renan, sozinhos, valem por um samba-enredo completo sobre praticamente todos os vícios que fazem a vida pública nacional ser a miséria que ela é. Mas, para o PT de 2013, ambos são aliados preciosos das massas trabalhadoras, junto com Fernando Collor, Paulo Maluf, empreiteiros de obras, fugitivos do Código Penal, bilionários experientes em lidar com os guichês de pagamento do Tesouro Nacional, e por aí afora. Para o governo é tudo gente finíssima, empenhada em ajudar Lula no seu projeto de salvar o Brasil. O erro, na visão petista, é apontar o que está errado ─ aí já se trata de uma campanha que a direita reacionária, golpista e totalitária estaria fazendo contra Lula, como fez no passado contra Getúlio, com o apoio da “grande imprensa” e de “setores do Judiciário”. Sua arma de hoje, igual à de ontem, é o “moralismo” ─ delito atribuído automaticamente a quem aponta qualquer ato de imoralidade na vida pública. Getúlio, de acordo com esse sermão, foi um “mártir do moralismo”. Lula, os condenados do mensalão e toda a companheirada que frequenta o noticiário policial são as vítimas da direita moralista no momento.
Vítimas da direita? É curioso, porque aquilo que se vê parece ser justamente o contrário. Para ficarmos apenas no caso mais recente da série: que tipo de vítima poderia ser, por exemplo, a senhora Rosemary Noronha, a ex-chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo e amiga pessoal de Lula, denunciada há três meses pelo Ministério Público por crimes de corrupção passiva, formação de quadrilha, falsidade ideológica e tráfico de influência, junto com 23 outros suspeitos? Da trinca de irmãos Paulo, Rubens e Marcelo Vieira, os sócios mais visíveis de “Rose”, o primeiro era tratado pelo interessante apelido de “Paulo Grana”, conforme se constatou com a gravação de mais de 25 000 telefonemas trocados entre os membros da quadrilha. Fizeram de tudo. Conseguiram até mesmo ressuscitar o ex-senador Gilberto Miranda, dono de um espetacular prontuário aberto ainda nos tempos do governo José Sarney; imaginava-se que estivesse aposentado, mas constatou-se agora que continua na vida de sempre, metido com a privatização de ilhas e áreas públicas em volta do Porto de Santos. Ao longo desses três meses, Lula não foi capaz de dizer uma única palavra sobre o caso; não se sabe, na verdade, o que poderia ter dito. Mas toda a conversa ao seu redor apresenta as Roses, os Paulos e os Gilbertos como réplicas atuais dos alvos utilizados há sessenta anos pela campanha contra Getúlio. Moral da história: sem nenhuma explicação que possa justificar o que fazem no presente, Lula e seus aliados tentam pescar desculpas em histórias do passado. Como praticamente ninguém sabe nada sobre elas, podem contá-las do jeito que quiserem.
O normal é imaginar o futuro. O PT de hoje imagina o passado. Tudo bem, mas há dificuldades claras com esse conto ─ os fatos, teimosamente, não combinam com a lição que Lula e o PT querem tirar dele. A primeira dessas dificuldades está na simples passagem do tempo. Getúlio Vargas morreu quase sessenta anos atrás, em agosto de 1954. Só os brasileiros que hoje têm mais de 59 anos estavam vivos quando isso aconteceu; e quem, a esta altura, pode estar interessado no assunto? A imensa maioria da população não tem a menor ideia de quem foi Getúlio, e boa parte dos que sabem alguma coisa a respeito é indiferente ao personagem e à sua obra; despertam tanto interesse, hoje em dia, quanto a batalha de Tuiuti ou as realizações do regente Feijó. Mais difícil ainda, nessa tentativa de redecorar Getúlio Vargas como um santo para as massas brasileiras de 2013, é vender o homem como um político “democrático” ou “de esquerda”. É o contrário, justamente, do que mostram a razão e os fatos.
Getúlio chegou ao poder em 1930 por meio de um golpe apoiado pelos militares; derrubou o presidente Washington Luís e impediu a posse de seu sucessor legal, Júlio Prestes, de quem havia acabado de perder as eleições presidenciais. Dos dezenove anos que passou no governo, quinze foram como ditador. Seu Estado Novo criou uma censura oficial, legislava por decreto e permitia prisões sem processo. Perseguiu o movimento comunista brasileiro, que tentara derrubá-lo num levante armado em 1935, com uma selvageria que nada fica a dever aos piores momentos da repressão no Brasil. Aprovou a utilização maciça e sistemática da tortura contra presos políticos; permanece célebre, até hoje, o pedido do advogado Sobral Pinto para que fosse aplicado o artigo 14 da Lei de Proteção aos Animais em favor de seu cliente Harry Berger, militante comunista que, na condição de ser humano, foi torturado até entrar em colapso mental. A filosofia de Getúlio sobre esse tipo de problema, obedecida pela Justiça que o seu governo controlava, era bem curta. “O Estado Novo não reconhece direitos de indivíduos contra a coletividade”, resumiu ele em 1938. “Os indivíduos não têm direitos. Têm deveres.” Foi, enquanto pôde, um aliado virtual da Itália de Mussolini, de quem copiou as leis trabalhistas, e da Alemanha de Hitler, a quem apoiava negando vistos a judeus que tentavam refugiar-se no Brasil. Seu chefe de polícia e homem de confiança Filinto Müller era um aberto simpatizante do nazismo. Em 1936, ambos entregaram à Gestapo, que a mandou para a morte no campo de extermínio de Bernburg, a alemã Olga Benario, esposa do dirigente comunista Luís Carlos Prestes e presa como ele no Brasil; Olga estava grávida no momento em que foi deportada. Nenhum presidente na história do Brasil esteve tão diretamente ligado a um crime de morte, de forma tão comprovada, como Getúlio Vargas no caso de Olga Benario. E este é o homem que Lula apresenta hoje como seu herói.
Outro problema sério, que sempre aparece quando se tenta demonstrar que Getúlio Vargas foi vítima de um golpe aplicado pela direita brasileira, é encontrar o golpe. Getúlio não perdeu a Presidência da República por ter sido deposto num golpe da oposição extremista e conservadora, e sim porque se suicidou. Políticos veteranos, acostumados a enfrentar conflitos durante a vida toda, não se matam por causa de discursos da oposição, manchetes agressivas na imprensa e atos de indisciplina militar; vão à luta contra quem os ameaça. Não há dúvida de que Getúlio, em agosto de 1954 e já a caminho do fim de seu mandato, dessa vez obtido pelo voto, estava numa situação extremamente complicada. Agentes de seu governo eram acusados de crimes graves, incluindo o homicídio. Os adversários exigiam sua renúncia; cartazes com a letra “R” eram colados na fachada das residências. O principal porta-voz da oposição radical, o deputado e jornalista Carlos Lacerda, comandava no Congresso, na imprensa e na rua uma campanha incendiária por sua deposição. Havia aberta insubordinação militar; oficiais da Aeronáutica interrogavam na base aérea do Galeão, de forma francamente ilegal, funcionários de seu governo, e generais assinavam manifestos contra ele. Getúlio tinha a seu favor a lei, a popularidade e a opção de usar a força do estado para enfrentar a desordem criada por seus inimigos. Preferiu se suicidar com um tiro no peito no Palácio do Catete — aos 71 anos de idade, foi vencido por uma combinação fatal de amargura, desilusões, cansaço e depressão em estágio avançado.
O desfecho da história é bem conhecido. Getúlio foi substituído por seu vice-presidente, Café Filho, exatamente como previsto na Constituição. Um ano depois, na data marcada pelo calendário eleitoral, houve eleições livres e Juscelino Kubitschek, que não tivera a mínima participação na ofensiva contra Getúlio, foi eleito presidente da República, posto que ocupou até o fim do seu mandato. Nenhum dos inimigos políticos do presidente morto, a começar por Lacerda, jamais veio a ocupar cargo algum nos governos que se seguiram. Que raio de golpe teria sido esse, em que o presidente não é derrubado e os golpistas não põem o pé dentro do palácio? Mais difícil ainda é achar semelhanças entre agosto de 1954 e março de 2013. Não existe hoje o mínimo sinal de indisciplina militar. O governo tem maioria disparada no Congresso Nacional, onde acaba de eleger os presidentes das duas casas. Ninguém pede, nem de brincadeira, a renúncia de Dilma. A principal figura da oposição, caso se consiga encontrar uma oposição no Brasil, não é um barril de pólvora como Carlos Lacerda ─ ao contrário, é um político que poderia concorrer ao título de oposicionista mais camarada do mundo. Uma parte da imprensa, com certeza, não dá sossego ao governo. Mas não há um único jornalista ou dono de empresa de comunicação brigando para ser presidente da República.
Os lulistas condenados no mensalão tiveram sete anos inteiros para preparar suas defesas, e todos os seus direitos foram respeitados no processo. Ruídos falando em virar a mesa, até agora, só saíram do próprio PT e de gente como o malfadado Paulo Vieira, da trinca de “Rose”; foi pego numa gravação dizendo que os juízes do mensalão “não vão sair de lá ilesos”, que era preciso “parar o Brasil” e que “o negócio agora é tumultuar o processo”. Manifestações de rua, só em favor do próprio governo, com ônibus fretados, lanches grátis e camisetas que o cofre público, de um jeito ou de outro, acaba pagando. As forças conservadoras, enfim, parecem perfeitamente felizes com o governo, entretidas em comprar helicópteros, touros de raça e peruas Cayenne blindadas. Estão dentro do ministério e da base aliada. Segundo o próprio Lula, nunca ganharam tanto dinheiro como em seus dois mandatos de presidente. Golpe de direita? Getúlio? Lacerda? Não dá para ver nada disso.
Lula, com o PT atrás, fala em salvar a sua biografia, seu projeto nacional e a reputação do partido. Teriam mesmo de fazer essas coisas todas, pois áreas inteiras do governo federal viraram, nos últimos dez anos, uma espécie de cracolândia para viciados no consumo ilegal de verbas, favores e empregos públicos. Para isso, porém, precisam se defender com base nos fatos do presente. Getúlio Vargas não pode ajudá-los
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