De rei a cão sarnento |
"Cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, cai o rei de paus, não fica nada", dizia Ivan Lins nos anos 1970, repetiu ontem Demóstenes Torres, o segundo senador cassado pelos seus pares em 188 anos.
Estava sendo contraditório. Se ele é "bode expiatório", como diz, não vai cair mais nenhum rei, nem de ouros nem de paus. Tudo como dantes.
Ontem mesmo, a Câmara começou a inocentar os deputados envolvidos de alguma forma nesse esquemão do Cachoeira que inundava o Centro-Oeste e respingava em toda parte. Só sobrou o tucano Carlos Alberto Lereia para contar a história - e ser julgado pelo Conselho de Ética.
Como procurador, foi presidente do Conselho Nacional dos Procuradores Gerais de Justiça. Como senador, presidiu a poderosa Comissão de Constituição e Justiça. Filiado ao DEM, era líder do partido no Senado e potencial candidato a vice-presidente da República.
E, como arauto da ética e da moralidade, conquistou respeito e simpatia até mesmo no Supremo e na imprensa. Mas, ao ser cassado, era um ser absolutamente solitário -"cão sarnento". Tudo tinha, nada tem.
Se Renan, Sarney, ACM e Jader tiveram suas tropas de choque, Demóstenes morreu só e seu enterro foi sem choro nem vela. Nem ira nem comemoração, só silêncio. Desolador.
Demóstenes se vai e a CPI tende a ir atrás da campanha municipal, de palanques e holofotes, já que "a justiça foi feita" e o bode já expiou sua culpa. O resto? Deixa a polícia fazer. Reis, rainhas, cavalos e torres vão continuar deslizando em segurança no tabuleiro, até surgirem outros Demóstenes, outros Luiz Estêvão. Vai demorar. Caiu uma peça, vem o suplente aí. E o jogo continua.
Léguas a percorrer
Por Dora Kramer
O Estado de S.Paulo - 12/07/2012 A cassação do mandato de Demóstenes Torres obviamente não piora, mas também não melhora a imagem do Senado que encerrou a carreira política de um de seus pares sem, contudo, quitar a imensa dívida que acumula com a sociedade.
Em pé, de braços cruzados, acompanhando a sessão com um quase imperceptível sorriso no rosto, Renan Calheiros era a materialização de uma evidência: Demóstenes não caiu em decorrência do rigor ético dos senadores, mas por um conjunto de circunstâncias para ele adversas.
Se o critério predominante fosse o zelo ao decoro parlamentar, Calheiros não teria assistido à cena em posição tão privilegiada.
Assistiu porque foi absolvido a despeito de ter tido contas particulares (a pensão da filha) pagas por um lobista de empreiteira, de ter mentido apresentando a seus pares documentos falsos na hora da defesa.
Descontados os detalhes, na essência comportamento tão indecoroso quanto o de Demóstenes, cuja situação se diferenciou basicamente por dois fatores: ausência da rede de proteção - no caso de Renan extensiva do Palácio do Planalto à sustentação de um partido de peso imenso (PMDB) passando pelo receio reverencial de senadores intimidados - e a contradição entre o personagem que encarnava e as ações ocultas que executava.
Ativos importantes com os quais não contou o agora ex-senador. Disso, aliás, deu notícia em seu pronunciamento final recheado de sofismas. Numa desassombrada conversão à lei não escrita da boa convivência na Casa assumiu o que na visão dele foi seu "único erro".
Qual? Ser "intolerante" com os demais, perceber que não vale a pena "buscar a fama" em cima do defeito alheio. Pediu perdão aos que "levianamente" ofendeu e a todos aconselhou: "Não entrem por esse caminho".
Como legado do processo deixa uma lição. A austeridade, ainda que estudada e presumida, não compensa.
Certamente não foi essa a intenção, mas quando se viu perdido por um Demóstenes Torres perdeu-se por mil, confessando que seu rigor ético era mesmo artificial, que almejava com ele notoriedade e que deveria ter-se preocupado menos com as causas que defendeu ao encarnar doutor Jekyll e mais com a tessitura dos laços de amizade que garantiriam proteção à sua face mister Hyde.
Foi-se Demóstenes, mas ficou o Senado às voltas com seu passivo. Suas excelências têm desde já uma chance de escolher se o aumentam ou o reduzem na decisão sobre o que fazer com o suplente do senador cassado.
Se valer o critério aplicado ao suplente de Joaquim Roriz, Gim Argelo, Wilder Pedro de Morais será recebido de braços abertos, não obstante seja acusado de ocultação de patrimônio à Justiça Eleitoral e tenha relações notórias com Carlos vulgo Cachoeira.
Calendas. Se já era difícil a Câmara dar continuidade ao trabalho do Senado que aprovou o fim do voto secreto, a cassação de Demóstenes Torres torna a hipótese ainda mais remota.
Saciados os apetites, arrefecerão as pressões e prevalecerá a alegação de que o voto sigiloso, afinal, não foi obstáculo para a cassação.
Lacuna. Lula, CUT, UNE e os demais sócios da versão de que em 2005 não houve um escândalo que revelou a existência de um esquema de cooptação de partidos e desvio de dinheiro público, mas um golpe "das elites" para derrubar o então presidente, todos incorrem em falha grave de roteiro.
Se não houve fatos, por que não denunciaram a conspiração? Lula, por exemplo, pediu desculpas. Isso antes de ir à televisão propagar a história de que o PT fez o "que todo mundo faz" e de usar a autoridade presidencial para defender o crime eleitoral como atividade corriqueira perfeitamente aceitável.
Daí a extemporaneidade das ameaças de manifestações contrárias ao curso (sem que se saiba qual será) do julgamento do processo do mensalão no Supremo Tribunal Federal.
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