Maracutaia no coração do poder. A “mulher de Lula”, “Os Donos do Poder”, o Capítulo 5 de “Raízes do Brasil” e as “relações ancilares” de “Casa Grande & Senzala”. Ou ainda: Governo merece vaia, não aplausos!
O mais recente escândalo, revelado pela Operação Porto Seguro, da Polícia Federal, vem à luz com alguns aspectos jocosos, o que contribui, em boa medida, para lhe tirar a devida gravidade. Curiosamente, a personagem que serve para rebaixar a importância da lambança é justamente Rosemary Nóvoa Noronha, nada menos do que chefe de gabinete da representação da Presidência da República em São Paulo. Dito de outra maneira: quando a presidente está em terras paulistas, para aquele escritório se transfere a sede do poder. E por que o tom quase jocoso de certo noticiário?
Segundo o que se sabe até agora, e não é muita coisa, parece que ela se contentava “com pouco” para os padrões petistas: um cruzeiro promovido por uma dupla sertaneja, uma grana para pagar a cirurgia plástica, uma ajudazinha para custear os armários, apoio para fazer o divórcio… Uns R$ 5 mil aqui, outros R$ 7 mil ali… Nessas horas, sempre lembro de um depoimento de Delúbio Soares à CPI dos Correios. Indagado sobre o valor de uma determinada operação ilegal, com aquele ar de quem havia se encontrado, não fazia muito, com algum benzodiazepínico, afirmou: “Era mixaria, deputado, coisa de uns R$ 5 milhões…”. Quando lemos que a Rose pegava esses trocos aqui e ali, o diabo nos tenta: “Mas era só isso?”.
Há outro aspecto interessante — a relação de Luiz Inácio Apedeuta da Silva com Rosemary —, sobre a qual falarei, não sem antes fazer um voo até nosso passado mais distante. Acho que vale a pena. Vamos lá.
A história
Em “Os Donos do Poder”, Raymundo Faoro voltou às origens do estado português para caracterizar a formação do patronato brasileiro, demonstrando como está entranhada na nossa cultura a indistinção entre o público e o privado, entre os assuntos do estado e os interesses particulares. No Capítulo 5 de “Raízes do Brasil”, o livro mais mal lido da história brasileira, Sérgio Buarque de Holanda define — e, na verdade, lastima — a nossa contribuição à civilização: “o homem cordial”. Sérgio dá início ao capítulo lembrando que o “estado” não é a continuação da “família”; na verdade, são conceitos antagônicos. Não para a cultura do “homem cordial”, em que as coisas se misturam. Leiam o trecho que segue em azul, lembrando sempre que ele foi um dos fundadores do PT… Não era um marxista, diga-se, nem padecia da idiotia política do filho compositor. Se vivo fosse, talvez rasgasse a ficha de filiação.
“Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos.
A escolha dos homens que irão exercer funções publicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. O funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização, adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático quanto mais caracterizados estejam os dois tipos.
No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente,do núcleo familiar — a esfera, por excelência dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração — está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.”
Retomo
Pois é… A cultura da mistura entre o público e o privado continua, sim, mas agora temperada e, como direi?, “hegemonizada” por um partido, que veio a tomar o lugar das “famílias”. É por meio dele que os interesses privados se apropriam do estado. Não superamos o familismo em benefício do estado burocrático virtuoso e impessoal (na caracterização weberiana); ao contrário: os petistas se associaram às estruturas arcaicas da sociedade brasileira e conferiram a seu modelo ares de modernidade. Assim — e o mensalão é a mais clara expressão do que estou a sustentar —, as relações de troca que o partido realiza com os interesses privados são alçadas à condição de demandas públicas e operadas em nome de uma suposta sociedade organizada. O velho enverga as vestes da novidade para esconjurar, uma vez mais, o estado impessoal.
Não é por acaso que o petismo repudia, por exemplo, com tanta energia a privatização de estatais e ensaia a sua experiência de capitalismo de estado. Empresas privadas operando serviços públicos, reguladas por agências de fato independentes, significaria excomungar as chances da arbitragem pessoal, do jeitinho, do arranjo, dos acertos de bastidores, do caixa dois de campanha. Cumpre, então, como eles fizeram, denunciar a, como é mesmo?, “venda do patrimônio nacional”, que feriria toda uma nação, para manter o controle efetivo do estado em benefício da… nação petista!
Agora a Rose e o Lula
Pois é… Vocês se deram conta das entrelinhas das reportagens? Uma assegura que Dilma teve de negociar com Lula a demissão daquela senhora. Outra informa que Gilberto Carvalho — o faz-tudo do Apedeuta no Planalto — teve de ser acionado porque a presidente sabia que o assunto poderia ser delicado. Outra ainda dá conta de que a funcionária era dotada de um temperamento difícil, que tinha de ser, não obstante, tolerado — e por que tinha? Uma quarta conta que, embora chefe do escritório da Presidência em São Paulo, acompanhara Lula em boa parte das viagens ao exterior…
Talvez seja o caso, então, de resgatar outro livro importante que ajuda a explicar a formação do Brasil: “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre. Na formação do Brasil, as, como posso chamar?, “relações ancilares” tiveram grande importância, não é?, especialmente no período colonial. Traços dessa outra expressão de informalidade parece que se misturam também à formação do estado, muito especialmente este aí, “modernizado”, como se vê, pelo petismo. Uma coisa é certa: foi preciso negociar com Luiz Inácio Lula da Silva a demissão da chefe de gabinete da Presidência em São Paulo mesmo com as gravações da Polícia Federal a indicar que mulher era elo numa quadrilha que operava no coração do poder.
Coisa grave, sim!
Parem um pouco para pensar. O esquema, segundo a apuração da Polícia Federal, envolve uma funcionária graduada da Presidência, o número dois da, atenção!, Advocacia-Geral da União (que representa os interesses da Federação) e diretores de agências reguladoras — justamente as agências!, que deveriam ser a expressão do estado árbitro entre os prestadores de serviços e a sociedade que paga por eles. Uma súcia, pois, estava instalada no coração do poder e operando a poucos centímetros, no que concerne ao aspecto funcional, de Dilma Rousseff. E algumas nomeações, como está claro, se fizeram para satisfazer a vontade do Babalorixá de Banânia. Lembro: Luís Inácio Adams, o número um da AGU, ainda pode ser considerado pré-candidato ao Supremo. A infiltração, segundo a PF, havia chegado até o número dois…
Pior: não foram os mecanismos de controle do Executivo que detectaram as ações fraudulentas. Não fosse o arrependimento — ou algo assim — de um dos beneficiários da tramoia criminosa, o grupo continuaria a operar sem temor nem perigo, como se percebe, certo de que detinha as boas garantias. Não por acaso, quando a Polícia Federal chegou, Rose teve uma ideia: telefonar para José Dirceu — a quem havia servido por 12 anos (originalmente, foi ele quem a apresentou a Lula) — para ver se algo poderia ser feito. Consta que o homem que quer “julgar o STF” nas ruas não atendeu.
Um desses tontolinos que andam por aí (se não for coisa pior) nos conclama a aplaudir o governo Dilma por conta da independência da Polícia Federal e do Ministério da Justiça, ao qual o órgão é vinculado, porque leva adiante a operação… EU NÃO APLAUDO, NÃO! SOU UM HOMEM CONVENCIONAL. EU VAIO UM GOVERNO EM QUE ESSA GENTE TODA OCUPA CARGOS DE CONFIANÇA — E CARGOS DA MAIS ALTA RELEVÂNCIA! POR QUE EU APLAUDIRIA?
“Ah, Reinaldo, mas o governo não impediu a Polícia Federal de agir…” Só faltava isso, não? Imaginem se ocorreria a alguém a sugestão de que Barack Obama poderia impedir uma investigação do FBI. Por que eu deveria aplaudir a independência da PF, atribuindo-a ao governo Dilma — pagando, pois, quando menos, um tributo moral à turma — SE A CONSTITUIÇÃO ME DÁ DE GRAÇA A INDEPENDÊNCIA DA POLÍCIA FEDERAL? Por que eu devo pagar por aquilo que é uma garantia constitucional?
Eu vaio, mas Dilma será aplaudida
É claro que algumas notícias já nascem com perfis, desenhados pela máquina de propaganda, pelo viés ideológico do noticiário, pelo espírito do tempo… Esse noticiário já veio à luz com a marca “Dilma não tolera a corrupção e demite mesmo”. Os nomes de Lula e Dirceu associados à turma da maracutaia não indisporão o eleitorado petista com a presidente e ainda servirão para despertar a simpatia em setores da sociedade refratários à dupla. Compreendo o mecanismo que leva a isso, mas não posso me esquecer de que à Presidência da República coube a nomeação da quadrilha.
Um grupo operando no coração mesmo do poder só nos informa a que distância estamos de uma República de fato e como é ineficaz responder a certos desafios com algumas feitiçarias legiferantes. A questão é mesmo de outra ordem. Mas isso fica para outro post, que este já foi longe.
A síntese é esta: mais um escândalo envolvendo “a mulher” e os homens de Lula é a evidência do “moderno” estado arcaico petista.
Texto publicado originalmente às 3h35
Tags: corrupção, Governo Dilma
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