Socialismo? Só na América Latina
Por Carlos Alberto Sardenberg*
Mesmo com algumas crises financeiras e bolhas, a economia mundial exibe crescimento vigoroso desde os anos 1990, e simplesmente espetacular de 2003 para cá. Diversos fatores se combinaram para isso - estabilidade monetária (inflação dominada, juros baixos), abertura ao comércio externo e à circulação de capitais, tecnologia de informação e telecomunicações, permitindo ganhos de produtividade. Mas há um outro fator histórico, decisivo: a incorporação de dezenas de países ex-socialistas e seus bilhões de habitantes ao capitalismo global.
A enorme capacidade de criar riqueza do capitalismo encontrou locais propícios para se multiplicar. Capitais do mundo todo encontraram novos pólos de investimento. Populações desses países - muitas com alto nível educacional, como as do Leste Europeu - entraram com tudo no modo de produção capitalista, com uma forte vontade de prosperar. Em diversos países se formou uma combinação de mão-de-obra educada, mais barata do que nos centros mundiais e trabalhando em plantas modernas, de alta produtividade.
Mais ainda: muitos países trouxeram novos recursos naturais, como o petróleo e o gás da Rússia e vizinhos, que alimentam a Europa Ocidental. E, sobretudo, bilhões de novos consumidores foram incorporados aos mercados mundiais. Com o crescimento acelerado desses novos capitalistas e o contínuo ganho de renda, os mercados se multiplicaram. (A brasileira Arezzo vai abrir lojas na China para vender sapatos femininos a partir de US$ 150 o par. Para quem? Para as novíssimas classes A e B que crescem naquele país. O consumo de carnes cresce fortemente nesse novo mundo, para alegria dos exportadores brasileiros.)
Na verdade, como notou Alan Greenspan em seu livro A Era da Turbulência, temos o privilégio de acompanhar um evento único: estamos verificando a olho nu, em tempo curto, como se forma esse modo de produção capitalista, processo que, na outra parte do mundo, levou séculos para se consolidar.
Há um único lugar no mundo que está tentando fazer o caminho contrário, para o socialismo. Adivinharam, claro, a América Latina.
Só nesta parte do mundo as idéias socialistas são levadas a sério, na teoria e na prática. No Brasil, temos conseguido escapar de certas experiências, mas fica sempre uma inquietação no ar, pois o pensamento socialista domina as escolas e as faculdades na área de humanas.
O pessoal continua gastando um tempo enorme estudando marxismo e socialismo - história morta. E sou capaz de apostar que nenhuma escola de ciências sociais tem estudos sérios sobre esse fenômeno da introdução do capitalismo em meio mundo.
Um exemplo desse quadro é a última prova do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), do Ministério da Educação.
Os testes não deixam outra possibilidade: se o universitário concorda com a idéia de que a história e a sociedade se movem pelo conflito de classes entre capital e trabalho, como ensina o marxismo, então deve ter tirado nota 10.
Se, ao contrário, o universitário pensa que a liberdade individual, o mercado livre e o direito de propriedade constituem os melhores fundamentos das relações sociais e econômicas, como prova o mundo moderno, esse aluno errou a maior parte das questões.
Se pensa isso e foi esperto, não errou, pois as questões são construídas de tal modo que a "resposta socialista" surge como obviamente correta e a outra, "neoliberal", parece uma estupidez ou uma ingenuidade.
A questão 10, por exemplo, pede uma breve dissertação sobre o papel desempenhado pela mídia nas sociedades democráticas, a partir de três enunciados. Dois deles, um dos quais é uma entrevista de Noam Chomsky, sustentam que a mídia (assim, no geral) é um instrumento das classes dominantes, do capital, para manter a exploração e bloquear, de modo sutil e subliminar, a circulação de "idéias alternativas e contestadoras".
O outro enunciado é maroto. Procura elaborar uma caricatura bonitinha. Diz assim: "A mídia vem cumprindo seu papel de guardiã da ética, protetora do decoro e do Estado de Direito. Assim, os órgãos midiáticos vêm prestando um grande serviço às sociedades, com neutralidade ideológica, com fidelidade à verdade factual, com espírito crítico e com fiscalização do poder onde quer que ele se manifeste."
Nesse quadro, se o aluno entendesse que, nos regimes democráticos, há jornais, revistas, rádios e TVs que procuram relatar os fatos da maneira mais objetiva possível; que a imprensa não-partidária e não-religiosa é induzida a isso pela concorrência e pela competição no livre mercado; que há, sim, imprensa comprometida com a democracia, com a liberdade de opinião e com a vigilância dos governos, sendo isso testado pelo seu público, o melhor a fazer seria evitar essa argumentação, pois o contexto da questão indicava que seria considerada falsa.
Para o Enade, ou a mídia é de uma santidade exemplar, impoluta e infalível; ou não existe a menor liberdade de imprensa e de opinião e a mídia dita democrática é sempre um truque para calar os trabalhadores e suas lideranças.
Quem se lembrou dos ataques de membros do governo e do PT à "mídia golpista" lembrou bem. É essa visão mesmo. Fazer reportagens sobre mensalão e aloprados, criticar a administração lulista e seu partido só pode ser coisa da direita, pois o governo, sendo o deles, necessariamente está certo.
Que o PT diga isso, faz parte do jogo, desde que não tentem, a esse pretexto, melar o jogo. Agora, que o MEC coloque essa visão esquerdista como a verdade, numa prova para milhões de alunos, é lavagem cerebral.
*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista. Site: www.sardenberg.com.br
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