Essa corrupção televisionada é café pequeno. Vão correr atrás dos peixes grandes?
Enquanto isso, projeto que pode punir as práticas de suborno dorme nas comissões da Câmara Federal
"Essas firmas têm
contratos com empresas da órbita federal, estadual e municipal, e são generosas
doadoras de campanha. Corrupção ampla, geral e irrestrita da iniciativa
privada, envolvendo também agentes públicos"
Deputado Chico Alencar
(PSOL-RJ).
Empresários corruptores
acabam impunes. Afinal, "não são diferentes dos outros"
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Não me
leve a mal, mas as cenas de suborno revelados pelo "Fantástico" são
café pequeno diante das práticas de desvios dos dinheiros públicos que marcam a
relação criminosa entre fornecedores e prestadores de serviço e um estado
vulnerável desde priscas eras.
Têm o
mérito de mostrar que o pontapé inicial dessa roubalheira é dado pela malta de
corruptores privados. E só. Não chega a ser nem o que se poderia chamar de
"ponta de um iceberg". O hospital que compõe o cenário é um pequeno
comprador, comparado a uma estrutura de saúde que sorve um orçamento de mais de
80 bilhões só a nível federal.
Assim
mesmo, duvido que peguem essas quatro empresas para uma devassa completa,
investigando todos os contratos com os órgãos públicos, assinados em nome da
"ética do mercado", a ética da propina escancarada. Afinal, só a
Locanty doou na última campanha R 3,3 milhões para políticos governistas, a
maioria do PMDB. Isso, doação formal - imagine o dinheiro que rolou por baixo
dos panos.
Essa empresa recebeu R$ 181,3
milhões nos últimos cinco anos do governo Sérgio Cabral, em contratos com
secretarias como as de Saúde, Segurança, Ciência e Tecnologia, Obras e
Ambiente, além de instituições como o Tribunal de Justiça. Já a Bella Vista,
fornecedora de alimentos, levou R$ 53,2 milhões do estado. Só da Secretaria de
Administração Penitenciária (Seap) foram R$ 7,3 milhões no ano passado. Já a
Toesa, entre 2008 e 2012, recebeu R$ 27,9 milhões. E a Rufolo, R$ 20,5 milhões.
Você não tem idéia do que se passa na macroestrutura
que pulveriza as verbas na área, num universo que envolve a todos, municípios,
Estados, hospitais privados, fundações e filantrópicas. Porque em todas as
vendas, sobretudo de serviços, a propina é obrigatória e aceita como
"parte do jogo" por todo mundo. Todo mundo sabe, esteja na boquinha
ou não.
E ninguém
faz nada, à espera que a fila ande e sobre umas patacas para si.
Mas também é ilusão achar que isso só ocorre na
área da saúde. Ou na área pública. Qualquer comprador de uma rede de
supermercados faz seu pé de meia com as gentilezas dos vendedores.
Hoje, você começa a ser surrupiado nas contas do
seu condomínio, que descobriram na terceirização de quase tudo a fórmula segura
de pegar um por fora.
Há apartamentos no Rio em que você paga mais de condomínio do que de aluguel.
Esse sistema de compra e venda é típico de um
regime moldado para o ganho por fora, esse "caixa 2" que fica à salvo
inclusive do pagamento de impostos.
Isso eu já
contei antes. Mas quem me deu atenção?
Há situações muito mais graves. Já escrevi aqui,
por mais de uma vez, como funciona a corrupção nas obras públicas. Disse que
ela é comandada pela própria Associação dos Empreiteiros, que criou a figura da
"bola da vez" - um rodízio programado que assegura a cada empreiteiro
o seu "quinhão", sempre garantido por exuberantes superfaturamentos e
propinas proporcionais.
E não se cinge a "cartas-convites",
modalidade que só se aplica até certo valor ou nos casos de emergência, casos a
que se recorre abusivamente e que beneficiou empresas como a Delta Engenharia,
de um prezado amigo do governador Sérgio Cabral, em grandes contratos de
construção.
No caso das obras, a propina é tabelada e
dividida em três partes: 10% para ganhar a "concorrência", 10% para
molhar as mãos dos fiscais e 10% para receber, já que quem paga é outra
Secretaria. Em fins de governos, os secretários de Fazenda chegam a cobrar até
50% para que a dívida não passe para outra administração.
Para dar cobertura formal a
esse esquema, os orçamentos já prevêem o que chamam de BDI - boletim de
despesas indiretas - estimadas exatamente em 30%.
De um modo geral, tem sempre parlamentares
envolvidos nessas mutretas. Eles jogam pesado nas emendas que apresentam já
direcionadas para certas empresas. E mais recentemente já direcionadas para
certas ONGs. Todo esse jogo de pressão em favor das "emendas
parlamentares" tem a ver com os 30% que, quase sempre, seguirão de forma
sorrateira para seus cofrinhos.
Nas obras públicas, há tipos diferenciados de
"lucratividade". Os empreiteiros preferem fazer estradas e obras de
saneamento a construírem edificações, a menos de que o superfaturamento seja
muito vantajoso ou o destinatário final seja um pobre coitado, sem senso
crítico, que ganha uma casa "inacabada" nesses programas de moradia
popular.
Mas todo o sistema é permeável e ninguém lida com
ele sem a garantia de ganhos por fora. No passado, havia a desculpa da inflação
elevada. Orçava-se muito acima e se faziam muitos "aditivos" sob a
alegação da erosão do dinheiro. Mesmo agora, com a inflação baixa, a prática
continua nos mesmos percentuais na maior cara de pau.
Lembro de muitos episódios quando fui secretário
de Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro. Um deles me chocou
particularmente. Fui convidado para almoçar no antigo Albamar, de apetitosas
peixadas, pelo governador de um grande clube de serviços.
Era um
senhor de quase 80 anos, com quem havia cruzado em alguns eventos comunitários.
Não sabia que o velho era dono de uma construtora. Isso foi em 1991, quando
optamos por entregar a empresas privadas a construção de creches que até então
fazíamos a passos lentos pelo regime de "mutirão remunerado".
Mal o garçom serviu um peixe
à brasileira, ele pôs as cartas na mesa. Queria dez das 40 creches projetadas e
me daria 10% de "comissão". Quase engoli espinhas e fiz um gesto de
levantar-me da cadeira. Com uma fala traquejada, ele alegou que não se tratava
de desvio de dinheiro público: ele apenas estava abrindo mão de parte do seu
ganho.
O peixe ficou lá, pois perdi o apetite. Mas fiz
questão de dividir a conta, despedi-me do preclaro e disse que só não o
prenderia na hora devido à sua idade provecta, aos seus cabelos e bigode
brancos. Ele ainda advertiu:
- Você está arranjando
problema para você; dou agrados a gente muito mais poderosa, e ninguém vai
gostar de saber dessa sua descortesia.
O diabo é que essas revelações dos dois
jornalistas - André Luiz Azevedo eu conheço muito bem dese a década de 70 e é
um profissional sério - vai se diluir com o tempo. As quatro empresas
escolhidas para a mostra passarão por algum perrengue, mas depois estarão aí
operando, com a ajuda dos políticos amigos. Ou de artifícios.
Na primeira vez que fui
secretário, peguei uma empresa chamada Marcoren, entregando tubos simples, no
lugar de "armados", que custam muito mais caro. Isso porque um deles
caiu do caminhão e se despedaçou.O velho Waldemar, presidente da Associação da
Rua Henrique de Góes, em Rocha Miranda, viu que havia algo estranho e me ligou.
Mandei o meu então chefe de Gabinete, professor Cesar Augusto, ir pessoalmente
ao local com ordens para levar todas as manilhas para a 40ª DP. No mesmo
momento, publiquei ato tornando essa empresa inidônea para vender à Prefeitura.
Pouco adiantou. Seus
proprietários, através de terceiros, passaram a usar outras que já dispunham
como "laranjas" para "lavar" concorrências e garantir sua
classificação.
Projeto
contra corrupção dorme na Câmara
Há no Congresso desde 2010 o projeto de Lei 6826/10, enviado pelo próprio Executivo, que não é nenhuma
obra prima, mas pode inibir as práticas de corrupção e suborno, na medida em
que pune diretamente as empresas envolvidas em fraudes de licitação e
superfaturamento, o que não acontece hoje, quando a empresa corruptora pode
oferecer a cabeça de um funcionário e "dar a volta por cima".
Esse projeto decorre de um pacto assinado por
39 países para coibir atos de corrupção e suborno. Desse total, Brasil,
Argentina e Irlanda são os únicos que ainda não aprovaram qualquer legislação a
respeito.
Não é muita coisa, mas já é
alguma coisa. O PL 6826/10 responsabiliza civil e administrativamente as
empresas que se beneficiam de crimes contra a administração pública. Pelo
texto, essas companhias ficam sujeitas a multas de até 30% do faturamento bruto
do ano anterior, excluídos os tributos - quando não for possível determinar
esse faturamento, o juiz poderá definir um valor entre R$ 6 mil e R$ 6 milhões.
A intenção é recuperar os recursos desviados, uma
vez que apenas 8% deles retornam aos cofres públicos, segundo dados da
Controladoria-Geral da União (CGU).
Pergunta se você foi informado pela grande mídia
desse projeto. Pergunta se essas ONGs exibicionistas estão colhendo assinaturas
para sua aprovação. Pergunta se o governo a editou como Medida Provisória para
ganhar tempo. Pergunta se a "oposição" que agora quer faturar encima
da matéria do "Fantástico" deu algum passo para fazer o projeto
andar. Pergunta se esse projeto está na pauta para votação.
A resposta será a mesma:
embora definido em regime de prioridade e caráter conclusivo, o projeto dorme
sob proteção do silêncio cúmplice de todos os que ou se fartam nas seculares
práticas de corrupção ou se aproveitam dela para jogar para a platéia e
alimentar o faz de conta que torna o nosso um dos paraísos da roubalheira
ampla, geral e irrestrita.
E assim a
farsa continua como marca registrada de u m país de espertos atuantes diante de
um povo despolitizado, descuidado e alienado por outras "emoções".
Que vira as costas para a política, deixando o campo livre para o macro crime
organizado.
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