FAZENDO HISTÓRIA – O DIA EM QUE CELSO DE MELLO DISSE COM TODAS AS LETRAS: “NÃO! VOCÊS NÃO PODEM”
Manifestantes protestam contra a corrupção, em 7 de setembro de 2011, com faixa que traz o título de um texto deste blog, em foto enviada por um leitor
O site do Supremo Tribunal Federal publicou trechos do voto do ministro Celso de Mello. Trata-se de um dos grandes momentos, atenção!, da história do Supremo, não só deste julgamento. Esse voto deveria ser, no que concerne aos valores, uma espécie de segunda Constituição da República, a elucidar todos os bons valores da Carta Magna — ainda que esta traga, em si, alguns problemas. Mas não se duvide jamais de que seu norte é o regime democrático, com o poder exercido segundo as exigências da ética.
Mello lembrou que é UM DIREITO NOSSO ter um governo decente e uma Justiça limpa — “o cidadão tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis”. Mais ainda. O ministro disse um sonoro “Não, vocês não podem” a corruptos e corruptores: “quem tem o poder e a força do Estado, em suas mãos, não tem o direito de exercer, em seu próprio benefício, a autoridade que lhe é conferida pelas leis da República.”
Celso de Mello sustentou que a corrupção agride a própria essência da democracia e da organização do estado e também compromete gravemente a vida das pessoas, dos mais pobres, dos mais vulneráveis. Leiam: “A corrupção deforma o sentido republicano de prática política, compromete a integridade dos valores que informam e dão significado à própria ideia de República, frustra a consolidação das instituições, compromete a execução de políticas públicas em áreas sensíveis como as da saúde, da educação, da segurança pública e do próprio desenvolvimento do País, além de afetar o próprio princípio democrático. E lembrou também que ela responde pelo sofrimento concreto dos brasileiros, dois mais pobres, dos vulneráveis: “
Mello chamou os crimes reunidos sob o nome-fantasia “mensalão” de “assalto à administração pública”, praticada por “marginais do poder”.
No dia 2 de setembro de 2011, escrevi neste blog um texto intitulado “Não, vocês não podem!” Num protesto contra a corrupção no dia 7 daquele ano, que reuniu milhares de pessoas em várias partes do país, vi com satisfação o título daquele post transformado em faixa de protesto. A imprensa internacional noticiou. Os poderosos, a rede suja na Internet, financiada por estatais, e os arrogantes de sempre, montados no dinheiro público, faziam pouco caso dos “5%”, da “minoria”, dos que não teriam nem mesmo direito a voz.
Escrevi naquele texto:
“O ladrão de hóstias pretende ser hoje um ladrão de instituições cheio de moral e razão. Mais do que isso: quer dar à sua saga uma dimensão verdadeiramente heróica. Se, antes, pretendeu ser o paladino da liberdade contra a ditadura, numa história superfaturada, apresenta-se hoje como o paladino da ditadura contra a democracia. O herói é um lobista de potentados da economia nacional e global e reivindica o direito de ter como subordinados homens de estado — cuja conduta é regulada por princípios de ética pública —, com os quais pretende despachar num governo clandestino, paralelo, que se exerce em quartos de hotel, numa espécie de lupanar institucional.”
Quais fundamentos mobilizavam as pessoas das ruas ou sustentavam o meu texto? Estes, que vão, então, no trecho tornado público do voto de Celso de Mello. Sim, ainda há juízes em Brasília. E o voto de Celso de Mello, que já nasceu histórico.
(…)
Entendo que o Ministério Público expôs na peça acusatória eventos delituosos revestidos de extrema gravidade e imputou aos réus ora em julgamento ações moralmente inescrupulosas e penalmente ilícitas que culminaram, a partir de um projeto criminoso por eles concebido e executado, em verdadeiro assalto à Administração Pública, com graves e irreversíveis danos ao princípio ético-jurídico da probidade administrativa e com sério comprometimento da dignidade da função pública, além de lesão a valores outros, como a integridade do sistema financeiro nacional, a paz pública, a credibilidade e a estabilidade da ordem econômico-financeira do País, postos sob a imediata tutela jurídica do ordenamento penal.
(…)
Quero registrar, neste ponto, Senhor Presidente, tal como salientei em voto anteriormente proferido neste Egrégio Plenário, que o ato de corrupção constitui um gesto de perversão da ética do poder e da ordem jurídica, cuja observância se impõe a todos os cidadãos desta República que não tolera o poder que corrompe nem admite o poder que se deixa corromper.
Quem transgride tais mandamentos, não importando a sua posição estamental, se patrícios ou plebeus, governantes ou governados, expõe-se à severidade das leis penais e, por tais atos, o corruptor e o corrupto devem ser punidos, exemplarmente, na forma da lei.
Este processo criminal revela a face sombria daqueles que, no controle do aparelho de Estado, transformaram a cultura da transgressão em prática ordinária e desonesta de poder, como se o exercício das instituições da República pudesse ser degradado a uma função de mera satisfação instrumental de interesses governamentais e de desígnios pessoais.
Fácil constatar, portanto, considerados os diversos elementos legitimamente produzidos nestes autos e claramente demonstrados pelo eminente Relator, que a conduta dos réus, notadamente daqueles que ostentam ou ostentaram funções de governo, não importando se no Poder Legislativo ou no Poder Executivo, maculou o próprio espírito republicano.
Em assuntos de Estado e de Governo, nem o cinismo, nem o pragmatismo, nem a ausência de senso ético, nem o oportunismo podem justificar, quer juridicamente, quer moralmente, quer institucionalmente, práticas criminosas, como a corrupção parlamentar ou as ações corruptivas de altos dirigentes do Poder Executivo ou de agremiações partidárias.
Extremamente precisa a observação, sempre erudita, do Professor Celso Lafer, quando, ao discorrer sobre o espírito republicano, acentua, a partir de Montesquieu, que “o princípio que explica a dinâmica de uma República, ou seja, o sentimento que a faz durar e prosperar, é a virtude. É nesse contexto que se pode dizer que a motivação ética é de natureza republicana. Isso passa (…) pela virtude civil do desejo de viver com dignidade e pressupõe que ninguém poderá viver com dignidade numa comunidade política corrompida”.
(…)
É por isso, Senhores Ministros, que a concepção republicana de poder mostra-se absolutamente incompatível com qualquer prática governamental tendente a restaurar a inaceitável teoria do Estado patrimonial.
Com o objetivo de proteger valores fundamentais, Senhor Presidente, tais como se qualificam aqueles consagrados nos princípios da transparência, da igualdade, da moralidade e da impessoalidade, o sistema constitucional instituiu normas e estabeleceu diretrizes destinadas a obstar práticas que culminem por patrimonializar o poder governamental, convertendo-o, em razão de uma inadmissível inversão dos postulados republicanos, em verdadeira “res domestica”, degradando-o, assim, à condição subalterna de instrumento de mera dominação do Estado, vocacionado, não a servir ao interesse público e ao bem comum, mas, antes, a atuar como incompreensível e inaceitável meio de satisfazer conveniências pessoais e de realizar aspirações governamentais e partidárias.
(…)
O fato é um só, Senhor Presidente: quem tem o poder e a força do Estado, em suas mãos, não tem o direito de exercer, em seu próprio benefício, a autoridade que lhe é conferida pelas leis da República. A gravidade da corrupção governamental, inclusive aquela praticada no Parlamento da República, evidencia-se pelas múltiplas consequências que dela decorrem, tanto aquelas que se projetam no plano da criminalidade oficial quanto as que se revelam na esfera civil (afinal, o ato de corrupção traduz um gesto de improbidade administrativa) e, também, no âmbito político-institucional, na medida em que a percepção de vantagens indevidas representa um ilícito constitucional, pois, segundo prescreve o art. 55, § 1º, da Constituição, a percepção de vantagens indevidas revela um ato atentatório ao decoro parlamentar, apto, por si só, a legitimar a perda do mandato legislativo, independentemente de prévia condenação criminal.
A ordem jurídica, Senhor Presidente, não pode permanecer indiferente a condutas de membros do Congresso Nacional – ou de quaisquer outras autoridades da República – que hajam eventualmente incidido em censuráveis desvios éticos e reprováveis transgressões criminosas, no desempenho da elevada função de representação política do Povo brasileiro.
Sabemos todos que o cidadão tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis. O direito ao governo honesto – nunca é demasiado reconhecê-lo – traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania.
A imputação, a qualquer membro do Congresso Nacional, de atos que importem em transgressão ao decoro parlamentar revela-se fato que assume, perante o corpo de cidadãos, a maior gravidade, a exigir, por isso mesmo, por efeito de imposição ética emanada de um dos dogmas essenciais da República, a repulsa por parte do Estado, tanto mais se se considerar que o Parlamento recebeu, dos cidadãos, não só o poder de representação política e a competência para legislar, mas, também, o mandato para fiscalizar os órgãos e agentes dos demais Poderes.
Vê-se, nesse ponto, a íntima correlação entre a própria Constituição da República, em face de que prescreve o seu art. 55, § 1º, e a legislação penal. Qualquer ato de ofensa ao decoro parlamentar, como a aceitação criminosa de suborno, culmina por atingir, injustamente, a própria respeitabilidade institucional do Poder Legislativo, residindo, nesse ponto, a legitimidade ético-jurídica do procedimento constitucional de cassação do mandato parlamentar, em ordem a excluir, da comunhão dos legisladores, aquele – qualquer que seja – que se haja mostrado indigno do desempenho da magna função de representar o Povo, de formular a legislação da República e de controlar as instâncias governamentais do poder.
(…)
Importante destacar, Senhor Presidente, as gravíssimas consequências que resultam do ato indigno (e criminoso) do parlamentar que comprovadamente vende o seu voto e que também comercializa a sua atuação legislativa em troca de dinheiro ou de outras indevidas vantagens.
(…)
A corrupção deforma o sentido republicano de prática política, compromete a integridade dos valores que informam e dão significado à própria ideia de República, frustra a consolidação das instituições, compromete a execução de políticas públicas em áreas sensíveis como as da saúde, da educação, da segurança pública e do próprio desenvolvimento do País, além de afetar o próprio princípio democrático.
Daí os importantes compromissos internacionais que o Brasil assumiu em relação ao combate à corrupção, como o evidencia a subscrição, por nosso País, da Convenção Interamericana contra a Corrupção (celebrada na Venezuela em 1996) e da Convenção das Nações Unidas (celebrada em Mérida, no México, em 2003).
As razões determinantes da celebração dessas convenções internacionais (uma, de caráter regional, e outra, de projeção global) residem, basicamente, na preocupação da comunidade internacional com a extrema gravidade dos problemas e das consequências nocivas decorrentes da corrupção para a estabilidade e a segurança da sociedade, eis que essa prática criminosa enfraquece as instituições e os valores da democracia, da ética e da justiça, além de comprometer a própria sustentabilidade do Estado democrático de direito, considerados os vínculos entre a corrupção e outras modalidades de delinquência, com particular referência para a criminalidade organizada, a delinquência governamental e a lavagem de dinheiro.
(…)
Esses vergonhosos atos de corrupção parlamentar, profundamente lesivos à dignidade do ofício legislativo e à respeitabilidade do Congresso Nacional, alimentados por transações obscuras idealizadas e implementadas em altas esferas governamentais, com o objetivo de fortalecer a base de apoio político e de sustentação legislativa no Parlamento brasileiro, devem ser condenados e punidos com o peso e o rigor das leis desta República, porque significam tentativa imoral e ilícita de manipular, criminosamente, à margem do sistema constitucional, o processo democrático, comprometendo-lhe a integridade, conspurcando-lhe a pureza e suprimindo-lhe os índices essenciais de legitimidade, que representam atributos necessários para justificar a prática honesta e o exercício regular do poder aos olhos dos cidadãos desta Nação.
Esse quadro de anomalia, Senhor Presidente, revela as gravíssimas consequências que derivam dessa aliança profana, desse gesto infiel e indigno de agentes corruptores, públicos e privados, e de parlamentares corruptos, em comportamentos criminosos, devidamente comprovados, que só fazem desqualificar e desautorizar, perante as leis criminais do País, a atuação desses marginais do Poder.
Texto publicado originalmente às 2h32
Por Reinaldo Azevedo
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